A cereja, a fava e as couves. Por João Pais

Por a 15 Dezembro 2020 13:07

Quando Jerez deu início às hostilidades possíveis em tão malfadado ano de 2020, marcava o calendário o décimo nono dia do mês de Julho, um ano carregadinho de máscaras, de distâncias sociais e de outras inconveniências tais, longe andaríamos de prever que estava para acontecer um somatório de incongruências que pouco, ou nada, se coadunam com o altíssimo nível de profissionalismo numa modalidade onde se escalpelizam milésimos de segundo ganhos em centímetros de pista atalhada.

Numa fase inicial, quando desempacotava seu ímpeto predador, Marc Marquez haveria de tirar errado azimute em sua dança avassaladora, saindo de pista direitinho a um ‘tem-te, não caias’ pela gravilha adentro, ou afora dependendo da perspectiva, sacando de sua cartola de ‘saves’ um coelho mais, coisa que já nada espanta os presentes nestes eventos. De regresso ao asfalto, batuta de maestro numa mão e punho noutra, veio um recital de ‘ganas y de arte’, galgando por ali acima como fogo em mato seco, passando uns e outros como se fossem apenas uns e outros, e isto, meus senhores, isto diz da genialidade do mais velho dos manos Marquez.

Até que, atingida a terceira posição e reservado um degrau no pódio onde poderia acolher merecida e ruidosa ovação que lhe fizesse jus, eis que Marc considera de pouca monta um pássaro na mão e vai daí … catrapuz, dois a voar, um deles era afinal o próprio do nosso homem de Cervera, cabriolando feio dali para fora, a pontos de amparar ainda uma Honda em trajecto desorientado em cabriolas de desnorte geométrico.

Ao pequeno erro inicial juntavam-se dois mais, um de errada conjugação aerodinâmica, o ante-catrapuz, outro de âmbito analítico no que à gestão de perdas diz respeito, nomeadamente considerando que um pódio era de pouca monta, esquecendo detalhe e pormenor gigantes, como seria o caso de uns pneus escafiados até à exaustão, em majestosa recuperação refira-se, dificilmente poderem ser aliados de um tudo ou nada de pouca, muito pouca, lucidez.

A cereja, tantas vezes apontada ao topo do bolo, ganhava agora contornos de surpreendente ginja, sua luzidia e brilhante cor vermelha passaria a esconder travo não doce, antes amargo, e ponhamos lá amargo nisso, como o futuro nos iria, tristemente, demonstrar.

Do ‘Angel Nieto’ sairia MM para o ‘quirófano’, deixando no ar algum suspense quanto ao seu regresso, sabendo nós que fora o úmero a ‘pagar o pato’, e o úmero é, como bem ciente temos, peça fundamental, única mesmo no que concerne ao reportório ósseo, na ligação do ombro ao cotovelo, duas partes importantes no manejo daquelas máquinas que pelejam pelo título de MotoGP.

Quando na quinta-feira, dia de conferência de imprensa e de apresentação de credenciais, Marquez oferece como prova de boa saúde uma série de flexões, toda a lógica que nos ensinaram nos bancos da escola e da vida, em relação a ossinhos partidos, com o tal de gesso e muito descanso, tudo isso caía por terra com estrondo, perante este Sindbad dos nossos tempos, este Popeye saltado das tiras de banda desenhada, homem de raríssimas virtudes recuperatórias.

Ou isso ou, assim o tememos, o herói ali sorridente fosse antes de origens mais fantasiosas, portando capa de… Superpateta, aqui sendo questão de relevo, de muito relevo diga-se em abono da verdade, quem tal capa estaria a vestir, se o próprio, se o director do próprio, se uma inquietante conjugação de cérebros em pausa, nas quais por inverosímil que pareça teremos de incluir um ou dois dos médicos daqueles que por aqui regem sentenças e autorizações.

E assim, na primeira sessão de treinos livres, cinco dias depois do malfadado e desnecessário ‘catrapuz’, cinco dias que nem uma semana são, perdoe-se-me evidência tão óbvia mas ilustrativa do processo de transformação da cereja no topo do bolo em fava do bolo-rei, eis que o campeoníssimo se atira ao circuito, saca tempos ao nível de quem por ali convivia em velocidades extremas, até perceber que as forças exibidas na anterior demonstração braçal estavam longe de corresponder aos mínimos exigidos para tão esforçada missão.

Começara, sem ninguém o perceber ainda em pormenor, o calvário que levaria MM à mesa de operações uma segunda vez, uma terceira e ‘quem sabe ainda’ … o que mais!

Depois de um erro pouco comum embora de consequências mínimas, a primeira saída de pista, depois do segundo erro, a queda castigadora de uma ânsia desmedida em demonstração de poderio naval ao jeito da Armada Imperial, cujo preço foi já mais elevado, eis que vindo da mais insuspeita estrutura, pelo seu elevado profissionalismo e cultura de exigência, sairia o disparate maior de transformar um floco de neve num nevão a ameaçar avalanche.

De consequências a todos os níveis, financeiras e competitivas, seja na HRC, na DORNA e num vastíssimo mundo de adeptos que ficam privados de ver nos tempos próximos um dos ‘raríssimos’, eis que perdida a cereja, engasgados com a fava, tenhamos agora o burro nas couves, como me azucrinava minha sant’Alice, avó irrepetível em sabedoria, quando me alertava para o desconchavo de minhas aleivosias.

E agora? … esta é a pergunta para a qual as respostas para além de tímidas chegam… a medo.

Uma quarta operação, um regresso com ambições mais comedidas?… todos se questionam acerca de qual Marquez poderá surgir em seu regresso, se aquele homem elástico, digno criador de ‘saves nunca dantes vistos’, ou se o futuro trará uma nova receita de vitória, baseada numa condução e estratégia que nunca, até hoje, Marc tenha experimentado. Mais ainda porque…

Porque no 2020, em que esteve ausente e porque no 2021 que ameaça retê-lo ainda longe do paddock, eis que uma alcateia de vorazes lobos parece atingir sua idade adulta, olhando sobranceira e ameaçadora o alvo da cobiça do octacampeão de Lérida.

Franco, Joan, Jack, Brad, Rins e Miguel, sequiosos e sentados na primeira fila.

Johann, Maverick, Fabio, Takaaki e Francesco desejosos de olhar o seu diário e de corrigir os momentos em que andando na frente, andaram para trás.

Pol, Alex, o Marquez mais novo e Valentino constituindo-se como pontos de interrogação gigantes, todos eles almejando passar a ponto de exclamação, mas da boa e da que arranca bruás e aplausos.

O primeiro chegando a uma Honda carregada de equações por resolver, o segundo saído dessa mesmíssima Honda para uma ali ao lado, onde quererá provar o erro de sua entrada e saída em menos de um fósforo e o terceiro… bom o terceiro a merecer parágrafo em exclusivo.

Il Dottore experimentará sensações em equipa satélite, milhões de olhos, ouvidos e corações segui-lo-ão devotos, numa época que poderá ser a sua última vivida no asfalto, poderá ter um coelho fantástico a sair de sua cartola de mágico sem igual.

Entretanto o que poderá consolar Marc Marquez?

Talvez que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe.

Regresse o pequeno grande campeão, é para já e apenas o que se pede.

E que todos, todos os outros, façam jus à entrada num universo de deuses com tantos fiéis.

E nós?

Nós contando os dias….

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Pedro_Matos
Pedro_Matos
3 anos atrás

👌👌👌

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Pedro_Matos
3 anos atrás

Obrigado.

pmdelicado
pmdelicado
3 anos atrás

Bom texto!👍

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  pmdelicado
3 anos atrás

Obrigado Pedro.

Tiagole
Tiagole
3 anos atrás

Top!!!
Mas o pior, é que temos de esperar 3 longos meses passar (que mais parecem anos), para ver os novos capítulos desta nossa adorada novela. 💪💪💪

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Tiagole
3 anos atrás

Passam num instante, e em Fevereiro já temos testes … 🙂

Diogo Anjos
Diogo Anjos
3 anos atrás

Show!

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Diogo Anjos
3 anos atrás

Thanks mate. Megamate! 🙂

jdiogoac@yahoo.com
3 anos atrás

É tão bom ler estas crónicas

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  [email protected]
3 anos atrás

Escrevê-las também. E assim damos um toque especial às 3ªs feiras ..

Francisco Pais
Francisco Pais
3 anos atrás

Será que para o ano não teremos MM em nenhum dos GP’s?

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Francisco Pais
3 anos atrás

Parece que a coisa está complicada… 🙁

Camilo
Camilo
3 anos atrás

Como sempre, mais uma crítica erudita e informada, com o requinte que habitou os leitores. É um deleite beber das suas palavras! Bem haja, e um grande abraço.

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Camilo
3 anos atrás

Obrigado Camilo, para a semana conto consigo por estes lados?

Pippo Berg
Pippo Berg
3 anos atrás

Muito bom, li e reli.

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Pippo Berg
3 anos atrás

🙂 .. isso é o que se pretende!

ruipfvalente
ruipfvalente
3 anos atrás

Contam-se os dias, de facto. Também de 7 em 7, porque estas crónicas não são Cousa Vã. Antes, com pesquisa prévia e conhecimento, de quem não sendo motard ou motociclista, há muito que o é e a sério. Grato João Pais e Grato Motosport por estas coisas que valem o dia.

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  ruipfvalente
3 anos atrás

Rui Valente, assim até dá gosto escrever! Obrigado.

Miranda78
Miranda78
3 anos atrás

Sempre na mouche!! 🎯🎯🎯

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  Miranda78
3 anos atrás

Obrigado Miranda. Todas as terças. 🙂

oryctolagus cunniculus
oryctolagus cunniculus
3 anos atrás

Será impressão minha ou o número de leitores tem aumentado? A escrita a cada dia que passa fica mais aprimorada. Excelente!
Já agora, será que é o escritor que se inspira nas façanhas do Miguel, ou será que o Miguel se inspira na escrita de forma a que consigas fazer cada dia mais e melhor?

Joao Pais
Joao Pais
Reply to  oryctolagus cunniculus
3 anos atrás

Oryctolagus, velho companheiro desta minha estrada, muito obrigado pelas tuas palavras. Quanto ao número de leitores, vamos semeando nesta minha nova casa …!

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